Prólogo
Inglaterra, 1842
A |
noite chegou, trazendo consigo o mais intenso breu que os olhos azuis da loira já haviam visto.
Era primavera. Era o dia de seu casamento. Toda a cerimônia e festa haviam sido perfeitas, poéticas e de um romantismo ímpar. No entanto, aquele que deveria ter sido o dia mais feliz da vida de Eleanor acabou sendo o dia de seu maior suplício.
Ali estava ela, no auge de seus vinte e poucos anos, preparando-se para a mais pavorosa noite de núpcias que uma mulher poderia sonhar. E isso a angustiava. Desestabilizava-a. Não fora isso que ambicionou.
Era bem verdade que todo o planejamento que fizera desde que o jovem duque Ian havia retornado de Londres incluía o casamento. Mas, após isso, seus sonhos partiam para uma romântica fuga ao lado do ardente Benjamin.
Olhou-se no espelho. Estava linda. O vento que adentrava pela janela enorme sacudia seu vestido claro, fazendo-o deslizar pelo maravilhoso corpo de formas perfeitas.
Apesar disso, uma sensação ruim preenchia sua alma. O ar quente da noite não lhe trazia calma ou paz, antes parecia gritar seu nome, chamando-a...
Eleanor sabia que Ian era jovem, rico, e, diziam, até bonito, mas ela nunca o desejara. O noivado com aquele homem de intensos olhos negros deu-se apenas para satisfazer sua ambiciosa família. Mal tinha visto o rapaz em toda a sua vida, contudo era sua noiva desde o nascimento. Nunca lhe foi concedida a oportunidade de escolha.
Ian fora estudar em Londres, enquanto Eleanor ficou na cidade de York, sendo educada pela família para ser uma boa esposa. Quando enfim o conheceu, na festa de noivado, não pôde dizer que ficara decepcionada com a aparência dele. Era moreno, contradizendo sua ascendência escocesa por parte do avô paterno, mas tinha olhos frios. Ela, fogosa e vivaz, não suportaria passar o resto da vida ao lado de um homem tão gélido como ele. Ao passo que a vida com o aventureiro Bem parecia muito mais convidativa, excitante.
Havia se encontrado com Benjamin às escondidas e proposto o normal para a situação. Afinal, amava o pobre rapaz.
-Está louca? - Ele gritou. - Não fugirei com você!
-Mas terei de me casar com Ian! Como pode aceitar isso?
-Era isso que eu queria, sua tola! Agora teremos tanto dinheiro quanto pudermos gastar! E você conseguirá tudo daquele idiota!
-Como pode aceitar me dividir com ele? Achei que me amasse!
-E amo... - a voz dele amenizou. - Mas como sobreviveríamos sem um tostão no bolso? Precisamos do dinheiro dele...
Foi então que Eleanor compreendeu tudo.
-Você me usou! – Disse, consternada. - Nesta noite, contarei tudo a Ian! Não vou mais enganá-lo!
No entanto, a revelação não aconteceu na noite da discussão, e tampouco nos dias seguintes. Agora, Eleanor e Ian haviam acabado de se casar, e a moça ainda não contara a verdade.
Eleanor suspirou. Naquele dia, Ben saiu batendo a porta do quarto vagabundo da pousada - o mesmo que por diversas vezes fora usado para seus encontros -, deixando Eleanor ali, chorando sozinha.
Sentou-se na cama. Logo o marido entraria pela porta, e ela teria que contar-lhe a verdade. Só não sabia se seria antes ou depois de ele perceber que não era mais virgem.
Respirando fundo, ergueu-se e foi até o espelho. Encarou a imagem refletida, analisando suas possibilidades. Pensou que talvez sua situação não fosse tão terrível. Afinal, alguém com sua aparência poderia dominar o marido sem grandes esforços. Olhou o colar no pescoço com a enorme pedra de diamantes. Era uma relíquia, e devia custar alguns milhares de libras. Pertencera à Rainha Matilde, que após uma guerra civil presenteou um antepassado de Ian pela lealdade, e se tornara a jóia mais importante da família. Recebeu-o na festa de noivado, e pensara em vendê-lo assim que fugisse com Ben. Mas então, ao descobrir os verdadeiros motivos do amante para estar com ela, abandonou a ideia.
De repente, um barulho do lado de fora interrompeu lhe os pensamentos. Em poucos instantes, adentrou pela porta uma figura que quase a fez gritar. Mal teve tempo de esboçar uma reação, mãos firmes puxaram o colar de seu pescoço e jogaram-na contra a janela de vidro, que não resistiu e quebrou, derrubando-a do quarto andar.
O silêncio reinou.
Lá embaixo, apenas um corpo morto - o corpo de uma moça que um dia fora linda, mas que agora jazia fria ao chão - quebrava o ar de calma do lugar.
Capítulo I
M |
airi jogou por cima dos ombros cansados o latão de água quente. Mal podia suportar as próprias pernas. Felizmente, logo acabaria aquela atividade. Lavar os vestidos caríssimos de lady Dorothea era um inferno. Tinha primeiramente que esquentar a água, deixar de molho as barras e então passar sabonete de lilás no tecido.
A jovem moça era empregada na casa do lord Ian McGreggor desde criança, mas nunca se acostumara à rotina de escrava imposta pela governanta, senhora Perpétua.
Órfã de pai e mãe, a linda moça de cabelos castanhos e olhos tão azuis quanto o céu nunca conheceu outra vida. Trabalhava dia e noite alheia ao que acontecia fora do seu mundinho que era a cozinha e, eventualmente, o lago da mansão de seu lord. Também não tinha ideia de como sua aparência era meiga e fascinante, e de como sua pele clara formava um conjunto perfeito com seu corpo exuberante.
Mairi poderia facilmente sair da vida de empregada e torna-se amante de algum lord rico. Mas nunca sequer cogitou isso. Apesar de ser uma moça pobre, tinha caráter. E também jamais parou pra pensar no quanto sua vida era triste. Nunca tivera uma família, não conhecia o significado da palavra carinho. Tratada como um animal, ela se escondia pelos cantos, com medo de tudo.
Quase um ano antes, só uma pessoa havia quebrado a autoproteção que a envolvia. O jovem Ben, rapaz belo, de cabelos escuros como a noite, e olhos tão dominadores que quase a fizeram se apaixonar. Poderia-se dizer que eles foram simplesmente amigos, mas seria mentir ao coração solitário da moça; afinal, o maldito órgão palpitava no peito quando o via chegar à mansão, para entregar as verduras encomendadas na banca de seu pai na feira.
Porém, alguns meses após alimentar aquela admiração secreta, descobriu os motivos que levaram o jovem mancebo a se aproximar dela, a empregada que limpava os ladrilhos: a belíssima Lady Eleanor. Triste, admitiu que o homem só havia firmado amizade com Mairi para se aproximar da noiva de lord Ian. Magoada, não conversou mais com Bem, passando a ignorá-lo assim que o via com a charrete. Entretanto, sempre carregou o peso de, mesmo involuntariamente, ter ajudado o rapaz a se aproximar da falecida nobre.
Mairi sabia que eles haviam se tornado amantes, mas nunca falou nada disso a ninguém. Já tinha as tarefas cansativas da mansão dos McGreggor para se preocupar. Além disso, apesar de ser uma moça fina, Eleanor nunca havia lhe tratado mal. Até lhe sorrira certa vez. Então, porque haveria de tentar atrapalhar aquele sentimento?
A empregada também foi uma testemunha da tristeza de Eleanor no dia do seu casamento, e viu o corpo dela estirado no piso de concreto logo após o fim da festa de suas núpcias. Algumas pessoas diziam que a moça havia se suicidado, atirando-se da janela do quarto de casal, ou que fora assaltada, já que o colar de diamantes que ela ganhou no noivado havia desaparecido. Mas outras falavam que lord Ian a matara. A verdade nunca apareceu, mas a polícia ainda estava investigando.
Mairi não sabia o que pensar, pois não conhecia o lord pessoalmente. Ian havia saído de York muito jovem para estudar em Londres, e retornou há pouco tempo para se casar com a sua noiva, prometida desde o nascimento. Mesmo agora que ele regressara, nunca lhe foi permitido entrar na sala dos patrões ou se aproximar. Ela ficava apenas no porão ou nas salas em que se lavavam as roupas do castelo. E foi nas lavanderias que ela acabou descobrindo a única coisa que sabia de seu lord "Ele tem um cheiro muito bom", é o que sempre pensava ao pegar as suas camisas para lavar.
-Já acabou, Mairi? - A governanta berrou ainda no corredor, aproximando-se.
-Ainda não, senhora Perpétua. Tenho que lavar os ladrilhos do quarto de milady Dorothea, e a biblioteca também.
Dorothea era a mãe de Ian. Mulher rígida, nunca lhe dirigiu um olhar. Bom, era de se esperar; afinal, a moça de cabelos castanhos não passava de um bichinho medroso pela enorme casa.
-Pois vá logo! Parece até que não tem gratidão pela bondosa lady Dorothea ter recolhido você da rua e lhe dado teto e comida! Deveria fazer seu serviço com mais rapidez, sua lerda!
-Estou indo! – Replicou, movendo-se apressadamente. Demorou quase uma hora para limpar as ricas cerâmicas do quarto, e não pôde deixar de pensar que não precisava ser assim tão grata pelo acolhimento de lady Dorothea, já que não ganhava um centavo para tanto trabalho.
Na verdade, desconfiava que os ricos Lords pagassem sua labuta, mas o dinheiro nunca chegou a suas mãos. Provavelmente, a governanta não pensava que ela necessitasse daqueles trocados.
Pensando em seu quarto, e no quanto desejava sua estreita cama de colchão de palha, Mairi foi à biblioteca. Entrou cabisbaixa sem olhar direito o ambiente, e se dirigiu a uma das prateleiras de livros. Pegou um deles e o olhou, sonhadora.
Ivanhoé... Era seu livro favorito. Aprendeu a ler com um bondoso reverendo que havia morado em York. Ele a ensinou na Bíblia, ela pegou gosto pela coisa, e logo começou a tomar emprestados alguns livros do castelo e os levar para o quarto por algum tempo, mas depois sempre devolvia. Esse era seu modo de escapar da realidade, e com Ivanhoé ela até se apaixonou pela primeira vez: Wilfred, personagem principal do livro.
O escritor escocês, Walter Scott, tornou-se seu autor favorito, e a história de Rowena e Wilfred, o casal de Ivanhoé, se tornara a sua história preferida.
-Também gosto muito de Ivanhoé...
Mairi quase derrubou o livro no chão, tamanho seu susto. Olhou para o canto de onde a voz havia saído e mal podia acreditar em seus olhos. O homem que havia falado era exatamente como ela imaginava o protagonista de Ivanhoé.
Wilfred estava à sua frente. Belo e alto... Talvez sua cabeça chegasse ao queixo dele, e, como considerava ter boa altura, a moça realmente pensou no quanto aquele homem parecia grande. Os olhos negros eram ornados por espessos cílios escuros, e o corpo esbelto, definido pelo requintado traje, tornava aquela presença ainda mais dominante e marcante.
Mairi sentiu as pernas adormecerem e, ainda descrente, pensou se o amado herói não teria saído da história para se tornar seu príncipe encantado e tirá-la daquela sua vida miserável.
-Acabou a inspeção? - Perguntou ele, sorrindo.
Envergonhada, saiu de seu devaneio, e guardou rapidamente o livro na prateleira.
-Me desculpe, senhor. Não percebi que estava no recinto.
-Não fique envergonhada. Você entrou e praticamente correu às prateleiras. Foi uma experiência especial observar seus olhos ao puxar dali Ivanhoé, que é meu livro preferido.
-Eu não pretendia danificá-lo...
-Ora, não se preocupe. Eu tenho vários livros de Walter Scott... Inclusive outro Ivanhoé, pode levar este com você se quiser...
A moça revirou os olhos.
-Gostaria muito... – foi sincera - mas não posso – recusou. - Se a senhora Perpétua o vir comigo, achará que eu roubei. – Explicou, ajeitando a touca na cabeça.
O rapaz ficou encantado com a figura exótica à sua frente.
"Linda como o sol, e tão meiga, chega a ser difícil resistir."
-Não se preocupe. Sou o dono da casa, e se lhe estou dando algo, a senhora Perpétua não tem nada que ver com isso.
Mairi abaixou os olhos, e com o livro nos braços, ia deixando a biblioteca, quando o rapaz a chamou.
-Espere!
Mairi estancou no lugar.
-Como se chama? - indagou.
-Mairi... - respondeu tímida, pensando consigo que aquilo parecia uma brincadeira: um lord querendo saber seu nome.
-Mairi? Mairi... Parece música. – Comentou, encantado.
Ela não pôde conter um leve sorriso.
Aquele, que só podia ser o lord Ian, teve ímpetos de pedir a jovem que tirasse a touca, para que pudesse ver-lhe os cabelos, já que, de alguma forma, aquele moça lhe lembrara a Rowena do livro.
-Leu algum outro livro do senhor Scott, Mairi?
Viu-a negando com a cabeça.
-Então, pegue este também. – Ofereceu, tirando um livro da gaveta na escrivaninha.
-Waverly... - falou ela, gaguejando um pouco.
A moça não tinha uma dicção muito boa, mas foi maravilhoso para Ian ver os olhos dela brilharem de ansiedade diante do livro. O duque nunca havia conhecido alguém como ela.
-Você vai gostar... - afirmou Ian, já disposto a contar a história do livro para ela.
No entanto, naquele exato momento, Perpétua entrou na biblioteca.
-Oh! Perdão, lord Ian! – Exclamou. - Eu não sabia que estava aqui. – Voltou-se para a estante, onde Mairi se encontrava. – Essa desastrada está o incomodando? – Seus olhos tornaram-se recriminadores. - Mairi, quantas vezes já disse para não incomodar os nobres? Vamos!
Ian sentiu uma vontade louca de protegê-la, pois a governanta sempre foi muito dura com os criados, contudo, ele próprio não sabia bem como lidar com os empregados. Além do que, em se tratando de Perpétua, até James, o orgulhoso mordomo da família, parecia ter receio de levantar a voz. Mesmo assim, precisava interferir de algum modo.
-Senhora Perpétua... - disse alto, ganhando a atenção da mulher. - Ela não está me incomodando. Inclusive, falávamos sobre Walter Scott e seus livros. Aliás, presenteei Mairi com dois livros e gostaria de pedir a senhora que a liberasse mais cedo de seus afazeres, para que possa ler meus presentes.
A governanta arregalou os olhos. Sem saída, apenas consentiu com a cabeça. Logo depois ela e Mairi se retiraram da biblioteca.
-Ele é lord Ian? - perguntou Mairi a mulher, com a voz baixa.
-Sim... – confirmou. - Pobre lord Ian, vive trancado naquela biblioteca desde a morte de lady Eleanor.
Ouvir aquilo entristeceu o coração da jovem empregada.
2 comentários:
Tadinha da Mairi....
Huashauahaua.. nem sabe o que a espera...
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